“Quedas destas ocorreram, embora não tão graves, em tempos de guerra”, começa por sublinhar o professor universitário, em entrevista à agência Lusa, acrescentando: “ainda estamos no princípio e só sabemos que, em termos económicos, o que se está a passar é gravíssimo”.
Daniel Bessa assegura que não há nada mais grave do que parar quase toda a produção ao mesmo tempo, tal como acontece atualmente, e que “esta é seguramente a crise mais grave por que passou o mundo”, lembrando que ainda não se sabe como vai acabar.
“Não sabemos quanto tempo é que vai durar e não sabemos onde está o fundo. Só sabemos que estamos numa descida inclinadíssima”, lamenta o antigo ministro da Economia do governo liderado por António Guterres, frisando que, “em tempos de guerra, de uma forma ou de outra, há uma máquina que tem de ser mantida a trabalhar para ganhar a guerra”, agora, “está tudo parado”.
O economista recorda que, em termos teóricos, se discute a forma das recessões, se em ‘V’, com uma queda abrupta seguida de uma recuperação também imediata e forte, ou em ‘U’, em que a queda não é logo seguida de uma igual recuperação. Discute-se, além da forma, em ‘V’ ou em ‘U’, se a queda é mais ou menos profunda.
Apesar dessa discussão, Daniel Bessa diz-se certo de uma coisa: “a produção está numa queda vertiginosa. A questão é saber como se sai daí, como é que se recupera, porque um dia terá de se recuperar”.
E, mais uma vez aqui, os efeitos económicos de uma guerra servem para exemplificar o que pode seguir-se.
“As situações de guerra são situações de enorme colapso e de que se sai muito rapidamente porque a guerra destrói tudo e há, portanto, uma capacidade produtiva que é preciso repor. No fim da guerra, o que é mais necessário é investimento, porque desapareceram as infraestruturas, desapareceram muitas unidades produtivas, e quando a paz chega é preciso um investimento maciço”, afirma.
Mas, mais uma vez, o atual cenário é diferente. “Desta vez, do ponto de vista económico, da criação de valor, está tudo parado e em certo sentido tudo destruído porque uma fábrica que não funciona não é uma fábrica, mas as capacidades estão lá”, salienta o economista, para concluir que não lhe parece que “à saída desta crise o mundo precise de um esforço de investimento tão maciço”.
Ainda assim, Daniel Bessa acredita que esse esforço de investimento possa vir a ser promovido pelo Estado.
“Na esfera pública há, seguramente, áreas de investimento que vão ser aceleradas como forma de ajudar, assim haja recursos financeiros”. Já do lado do setor privado, não será essa a prioridade.
“Do ponto de vista da produção civil, o que se torna absolutamente indispensável é repor o consumo e as cadeias de abastecimento porque as fábricas e os equipamentos já estão lá”, afirma.
Ou seja, explica o economista, este cenário sugere que “na recuperação da economia não podemos esperar uma fase ascendente tão rápida. Vamos ter uma recuperação mais lenta, que nunca será tão vertiginosa na subida como foi na descida e que vai demorar muito mais tempo a chegar aos níveis” antes do início da crise.
Daniel Bessa lembra que tem 72 anos, e diz “não acreditar que voltará a ver um Produto Interno Bruto mundial, nos anos que tem de vida, ao nível a que já viu”.
“Ainda estamos em negação sobre os efeitos que a crise terá no nível de vida”
O economista considera que em Portugal ainda há quem esteja “em fase de negação” sobre os efeitos da crise económica provocada pela covid-19 “no rendimento e no nível de vida” de todos.
O professor universitário diz que, se do lado da questão da saúde, “não há negação possível” e os “problemas estão à vista”, do lado da economia, vive-se “ainda uma espécie de fase de negação, em que se admite que as consequências poderão ser muito mitigadas”.
Daniel Bessa ressalva que para quem já esteja numa situação de ‘lay-off’ ou tenha perdido o emprego, é óbvio que já sentiu as consequências da crise económica, mas lamenta ainda ver pessoas a defender, por exemplo, “a proibição de despedimentos e coisas do género, como se isso fosse possível”.
“Não é possível levar uma empresa, qualquer que ela seja, a manter o emprego e a pagar os salários se estiver parada durante muito tempo”, explica o economista, adiantando que quem defende essa tese parece acreditar que, com essa proibição, conseguir-se-ia manter o rendimento das pessoas.
“Há quem pense que, se proibirmos os despedimentos, o rendimento poderá não cair tanto, mas o rendimento é o resultado da produção distribuído pelas pessoas e não havendo produção… É por isso que digo que ainda estamos em fase de negação do ponto de vista dos efeitos que isto vai ter no rendimento e no nível de vida das pessoas”, conclui.
Daniel Bessa alerta ainda para outro efeito que se poderá vir a fazer sentir: problemas no abastecimento de bens.
“Vamos ter problemas de abastecimento. Hoje quem tem dinheiro e está em casa, está preocupado, mas não lhe falta nada. Usa as compras ‘online’ ou usa ‘take away’”, lembra o professor universitário, alertando, no entanto, para que “se o atual estado de paragem produtiva se mantiver por mais dois ou três meses, esses bens vão faltar”.
Quem mantiver rendimentos vai ter de contribuir pesadamente para um esforço de solidariedade
As empresas e as pessoas que conseguirem durante a atual crise manter lucros e rendimentos “vão ter de contribuir pesadamente” para um esforço de solidariedade, defende o economista.
“Quem, por esta ordem, for capaz de manter lucros, salários e pensões vai ter de contribuir. Vai ter de contribuir pesadamente e com progressividade”, salienta o professor universitário, deixando claro que não quer ver lucros ou rendimentos a baixar, antes pelo contrário, para que possam contribuir para um esforço de solidariedade, de partilha da austeridade.
“É evidente que não se pode pedir a quem tem uma pensão mínima ou um salário mínimo esse esforço, mas consideraria repugnante que, quando terminar a fase de negação que estamos a atravessar, no momento próprio, mais cedo do que tarde, os rendimentos que sobreviverem não sejam chamados a pagar a sua parte”, explica o antigo ministro da Economia no governo socialista liderado por António Guterres.
“Não quero reduzir lucros, nem salários, nem pensões de ninguém, agora, em algum momento, as pessoas vão ter de assumir a sua quota parte de um esforço que chamaria de solidariedade, de partilha da austeridade”, enfatiza o professor universitário, lembrando que “na crise anterior falou-se muito sobre austeridade e sobre os anos de austeridades”, mas agora não é disso que se trata: “desta vez, a austeridade já cá está, é inevitável, precisando de solidariedade, para ser partilhada”.
Daniel Bessa diz concordar que, neste momento, no imediato, “o que se pode fazer é distribuir dinheiro, para que as empresas se mantenham, porque é vital que não acabem, e as pessoas não fiquem na miséria e não morram de fome.”
Mas, quando a recuperação se iniciar, “e provavelmente antes, mais cedo do que tarde, como referi, quem for capaz de manter algum rendimento tem de contribuir”, sublinha o economista, adiantando que se está a referir “aos lucros que alguns vão poder manter, não tanto na banca, um dos setores mais ameaçados, mas noutras empresas”, e “a quem recebe salários, alguns dos quais garantidos, como na função pública, pelo menos para já, ou pensões”.
Daniel Bessa diz mesmo que só este esforço pode justificar que haja também solidariedade por parte da União Europeia.
“Teria de dar toda a razão ao ministro das Finanças holandês se tudo se resumisse a ir ao Banco Central Europeu (BCE) e à Comissão Europeia buscar dinheiro, se, em casa, quem sobrevive não for chamado a contribui”, sublinha, salientando que não se excluí desse esforço.
“Espero sobreviver e, portanto, estou a falar contra mim”, afirma.
O professor universitário defende mesmo que o pior cenário que se pode dar aos portugueses, por irrealista, “é que o BCE e a UE vão resolver o problema, sem uma distribuição interna de custos”.
“As duas coisas têm de ir a par. Por isso é que falo de solidariedade. Perco toda a autoridade moral se tento pôr o essencial do contributo e da responsabilidade em terceiros. E isso para já não irmos mais longe, porque estamos a falar do nosso problema, mas há sempre, no mundo, problemas mais graves, para cuja resolução também teremos de contribuir; há sempre pior”, diz Daniel Bessa.
Depois de surgir na China, em dezembro, o novo coronavírus, responsável pela pandemia da covid-19, espalhou-se por todo o mundo, o que levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a declarar uma situação de pandemia.
O continente europeu é aquele onde se regista o maior número de casos e a Itália é o país do mundo com mais vítimas mortais.
Em Portugal, segundo a Direção-Geral da Saúde, registaram-se 311 mortes e há 11.730 casos de infeções confirmadas.
* Por Vítor Costa, da agência Lusa
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