(1) Óscares e (2) condução
Sobre aquela história da confusão final nos Óscares, confessem lá: não foi a mais emocionante cena da noite, bem melhor do que muitos filmes? De manhã, ninguém resistiu a ver o que se tinha passado.
Tudo aquilo foi uma série de erros improváveis: primeiro, o envelope errado, depois Clyde a hesitar, já a cheirar o esturro, mas sem saber como agir perante aquilo, a mostrar o envelope e a pedir ajuda à Bonnie — que, impaciente, chuta para a frente e declara o vencedor (compreende-se: já levavam três horas daquilo em cima).
Logo a seguir, os discursos habituais que, agora, ninguém consegue ver sem uma careta de sofrimento na cara.
Por fim, a confusão final: produtores batidos nestas coisas dos palcos, apresentadores com anos de televisão em cima, actores com décadas de palco no corpo: bastou um envelope e ficaram tão atrapalhados como o meu filho na festa de Natal.
Nós, de boca aberta, vimos aquilo corados de vergonha alheia, mas também com um certo alívio – bolas, não fui eu. E ainda mais: bolas, acontece mesmo a todos.
E acontece. Se algum dos meus caros leitores tiver visto aquela cena e pensado: “Ah, que burros! A mim é que nunca me aconteceria tal coisa!” — temo por si. Sofre dum perigoso caso de ilusão de superioridade, aquele erro que leva 90% dos condutores a acharem-se melhores do que a média — com resultados desastrosos por essas estradas fora.
(3) Conspirações e (4) cérebros
É uma verdade universal: há malucos para tudo. Por isso, como um amigo me diz tantas vezes, andar a combater ideias erradas na internet é como andar a tentar esvaziar o oceano com um balde.
Mas, mesmo assim, consegui ficar surpreendido com a rapidez com que surgiram teorias da conspiração sobre o que se passou nos Óscares. Surpreendido e um pouco desanimado: se há pessoas que conseguem ver a gravação e achar que foi tudo encenado, então vivemos mesmo em bolhas incomunicáveis.
Meus amigos, para quê ir buscar rebuscadas conspirações, quando a explicação é tão simples? Andamos por aí desorientados e atrapalhados e a fingir que sabemos o que estamos a fazer. Não somos os seres frios, calculistas e inteligentíssimos que os teóricos da conspiração imaginam.
Somos seres limitados. Os nossos cérebros são máquinas muito imperfeitas (benza-os Deus). Os trabalhos repetitivos irritam-nos. Ficamos aborrecidos com facilidade. Trocamos palavras. Esquecemo-nos de nomes. Enganamo-nos no caminho. Entregamos envelopes errados. E, já sabemos, alguns erros engordam, outros matam: pois também caímos de penhascos, adormecemos ao volante, dizemos o nome da pessoa errada na cama.
(5) Erros e (6) língua
O erro faz mesmo parte da nossa vida e mais vale aceitar o facto e aproveitar para aprender: o método da tentativa e erro é muito mais poderoso do que pensamos, mesmo perante a desgraça dos erros fatais — afinal, cada acidente de avião torna os aviões mais seguros.
Então quando o erro não mata, o que há a fazer é aprender a lição e levantar a cabeça. Cada vez que batemos com a cabeça na parede, ficamos a saber que está ali uma parede. Para quê desistir? O pior dos erros é mesmo não fazer nada com medo de errar.
Na língua, por exemplo... Ninguém aprende uma língua empinando as regras todas antes de começar a falar (e a errar) — e ninguém fala bem se abrir a boca apenas quando tem a certeza absoluta de que não vai errar.
Olhem para os mais novos: é tão bom ver uma criança a errar e a transformar palavras só dela no português de todos – o meu filho ainda anda a transformar um delicioso “fuísco” num “frigorífico” mesmo a sério — e diz “nunca não vi isto”. Vamos corrigindo e ficamos deliciados. E a verdade é esta: quanto mais falar (e errar), mais depressa saberá falar bem.
Já nós, os adultos, quando aprendemos uma língua estrangeira, enfim, empinamos umas quantas regras (é inevitável), mas todos sabemos que o melhor é mesmo a prática: falar sem medo do erro e viver uns tempos entre quem fala a língua.
(7) Evolução (e a Emma Stone)
Nós próprios só existimos por causa do tal método da tentativa e erro.
A evolução faz-se através de mutações aleatórias, ou seja, erros no momento em que os genes são copiados. Muitos destes erros não fazem nem mal nem bem. Alguns são prejudiciais. Mas, de vez em quando, lá aparece um erro que melhora a capacidade de os novos organismos se reproduzirem. Reproduzem-se mais e, por isso, passam mais vezes o próprio gene mal copiado à nova geração. Ora, o que acontece quando um erro contribui para a sua própria propagação? Ao fim dumas quantas gerações, já estará espalhado pela população.
Foi este princípio que nos levou de pequenos micróbios até aos seres complexos que somos hoje. Sem a tentativa e erro da natureza, não estaríamos aqui. Somos filhos de milhões de erros.
Talvez por isso mesmo, somos seres complexos e muito imperfeitos — até porque não evoluímos numa cidade nem nos bastidores dum palco em Los Angeles. É por isso que, de vez em quando, lá acontece a um contabilista ver a Emma Stone a passar e baralhar-se com os envelopes. É apenas humano, o pobre do homem.
O certo é que para o ano que vem aquele contabilista já não vai estar nos bastidores dos Óscares. A Academia sabe bem aprender com os erros, pois então.
Marco Neves é autor do blogue Certas Palavras. Publicou em Janeiro o seu segundo livro, com o título A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa (Guerra e Paz). É tradutor na Eurologos e professor na FCSH/NOVA.
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