É dia 10 de junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, o nosso penúltimo dia na ilha do Corvo. Finalmente conseguimos ter uma manhã tranquila, tomamos o pequeno-almoço juntos, há tempo para meter em cima da mesa tudo aquilo que têm sido os últimos dias. Ao fundo, a televisão passa as comemorações do Dia de Portugal.
Manuel Rita, antigo presidente da Câmara Municipal do Corvo, entre 1993 e 2001 e entre 2009 e 2013, e dono do único hotel da ilha, o Comodoro, onde ficámos alojados, faz-nos companhia no café. Senta-se no sofá, que com outros dois forma uma pequena sala de estar, confortada por exemplares amontoados de literatura açoriana e corvina, cada livro com uma dedicatória ao antigo autarca. Olha para a televisão, fita a parada militar, Marcelo Rebelo de Sousa e olha para nós: “No Corvo, o presidente da Câmara não pode ser político, tem de ser um visionário”, diz-nos.
Durante estes últimos dias ouvimos muitas histórias de como era o Corvo, mas poucas sobre como deve ser o Corvo. Rita foi no seu tempo um homem que pensava mais à frente. Foi o responsável pela estrada que liga a vila ao caldeirão, fundamental para que as pessoas conseguissem chegar aos terrenos e às pastagens, fez da ilha a primeira dos Açores a ter saneamento básico e o primeiro concelho do país a ter painéis solares em todas as casas para o aquecimento das águas. “Não somos uns coitadinhos, estamos é para aqui no meio do Atlântico”, sorri. Atrás, na janela, cresce o monte verde, a caminho do caldeirão, devidamente decorado com uma nuvem branca no topo, na janela ao lado, o mar, mais vivo do que nos outros dias, sem fim. Mas que bem se está aqui no meio do Oceano.
Não me lembro se a televisão tinha som ou não, mas lembro-me de um momento em que o senhor Manuel Rita teve de atender uma chamada. Desviámos a atenção para a televisão: “Olha, o João Miguel Tavares”, disse alguém. E ignorámos, quietos, cada um no seu lugar, como quem não quer perder a vez, aguardando o momento em que o antigo presidente voltasse e continuasse aquela que seria a nossa conversa do 10 de Junho.
O Corvo é um mundo, escreveu o Pedro no dia em que aterrámos. De facto é, mas não está ao nosso alcance, assim sem mais nem menos. Não é numa visita de médico de quem está a dormir nas Flores, não é numa noite ou sequer cinco. É preciso tempo para entender a calma e conhecer os caminhos que não nos levam sempre ao caldeirão, cuja foto parece ser o requisito único para se dizer que já se esteve nesta ilha. Mas quem olha de fora por vezes não o entende, não tem paciência para uma ilha onde os relógios andam a um ritmo diferente, ao da natureza, e não consegue separar o tamanho da ilha do tamanho das pessoas. É o peso da liberdade e de quem não a entende.
“Quando veio cá o Jorge Sampaio inaugurar o edifício onde está a Caixa Geral de Depósitos e as Finanças, ali em frente à escola, vinham também uns quantos jornalistas continentais. Depois da inauguração um deles perguntou ao Presidente se valia a pena haver um Corvo no mapa de Portugal. O Sampaio olhou para o chão e disse 'eu não vou responder, porque posso não ter a resposta certa, mas o autarca do Corvo deve ter alguma coisa para lhe dizer'. E eu perguntei assim: 'o senhor fez a quarta classe ou não?'. Ele disse que sim. 'Deve ter sido muito fraca', disse eu", contou Manuel Rita.
Aqui não se discute se se é ou não português, não há dúvidas, não se é outra coisa. “Na quarta classe, no meu tempo, a gente sabia quantos quilómetros era do Algarve a Trás-os-Montes e de Lisboa ao Corvo. Portugal é tão grande devido ao Corvo”, sublinha, antes de nos contar a resposta do antigo Presidente da República ao jornalista: "não se esqueça, diga isso no telejornal para toda a gente saber como é”.
“Diga isso no telejornal para toda a gente saber como é”, repetiu o antigo autarca, devagarinho e de sorriso orgulhoso, vincando as palavras de Jorge Sampaio.
Só mais tarde, ao final do dia, pela invasão ao meu mural de Facebook, Twitter e Instagram fui empurrado a ler o discurso de João Miguel Tavares.
Li com atenção o que disse o comentador político no palanque, em Portalegre. A reflexão sobre meritocracia, corrupção, igualdade de oportunidades para as pessoas que vivem fora de Lisboa e do Porto. Eu, como grande parte da população, nasci e cresci fora de Lisboa. Fui parar à capital como muitos dos meus amigos porque o meu distrito não nos era suficiente, provavelmente da mesma maneira que JMT saiu de Portalegre. A grande diferença entre mim e o João é a idade, eu tenho 24 anos e ele 46. Eu sou da geração e de um local que odeia o domingo, o dia de partida para Lisboa, a maior parte das vezes sem previsão de regresso. Sou de uma geração e de um distrito que sentiu e sente na pele a balela da meritocracia quando a maior parte de nós, em Lisboa, trabalha para poder sobreviver na capital à espera que alguém repare nesse tal trabalho, à espera da recompensa. Ninguém discorda de João Miguel Tavares, mas já estamos fartos de concordar. Já sabemos que há quem pense como nós, agora queremos é que quem pensa como nós e tem uma voz e a oportunidade de falar ao país faça mais do que apresentar meras evidências para aquilo que é a vida da maior parte da população.
A história do senhor Manuel Rita é a história do emigrante. Partiu para os Estados Unidos em 1973, voltou em 1990, e venceu as eleições autárquicas em 1991. Foi, viu o mundo lá fora e trouxe soluções para uma vila que vivia ainda isolada e com vários problemas estruturais. Construiu a casa com as próprias mãos, com o conhecimento que trouxe dos anos a trabalhar na construção civil na América. É a história de quem nunca se inibiu de gritar que aqui também é Portugal para os mais distraídos e para os que não queriam perceber. É a história de quem partiu e voltou, bateu o pé ao Estado Central, a certas figuras políticas e a certos favores políticos. É a história de quem fez, de quem não ficou só a ouvir os lamentos.
O 10 de Junho é o senhor Manuel Rita, é perceber, mais do que nunca, que Portugal é de Vila Real Santo António ao Corvo e não de Lisboa ao Porto. O 10 de Junho é conhecer a ilha do Corvo. O 10 de Junho são os autarcas e aqueles que lutam para que possamos ser felizes na terra onde crescemos e não ter de fugir para as cidades onde os políticos usam a palavra “meritocracia” para adiar respostas.
Eu quero viver no Corvo, eu quero voltar à Batalha, à minha terra. Eu quero ouvir sempre falar de Portugal pela voz de Manuel Rita para nunca me esquecer do tamanho do meu país. Só quando Portugal souber o que é, perceber a dimensão que tem, então sim, podemos voltar a JMT.
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