Tudo se passa na paisagem montanhosa de Caríntia, na Áustria meridional, na região dominada pela língua alemã onde o escritor nasceu, em dezembro de 1942, e no tempo em que nasceu, em pleno conflito mundial, sob domínio das forças de Hitler.
Handke toma por referência a família, vinda da minoria eslovena – os avós maternos, a mãe e os irmãos desta -, convoca-os, entre realidade e ficção, entre figuras reais e imaginadas, para que falem da opressão nazi e dessa verdade.
A proibição de falarem a língua materna, o esloveno, a obrigação de os homens partirem para a guerra em defesa da Alemanha de Hitler, e a resistência à anexação nazi ocorrida em 1938, feita a partir das montanhas pelas brigadas de ‘partisans’, estabelecem a ação de cada um dos cinco atos da tragédia.
“Tempestade ainda” é “uma tempestade contra a história, contra a história como ideia de progresso”, disse Peter Handke ao jornal Die Zeit, em novembro de 2010, quando concluiu a obra.
Ao misturar factos com recordações e ficção, o escritor, que foi Prémio Nobel da Literatura em 2019, homenageia os seus ascendentes, carregando para o palco acontecimentos que foram esquecidos ou ofuscados pelos livros de História, como afirmou à Lusa o encenador João Lourenço, no final de um ensaio de imprensa de “Tempestade ainda”.
Publicada em setembro de 2010 e estreada em agosto do ano seguinte, no Festival de Salzburgo, a peça põe em palco duas famílias: uma eslovena que colabora com os alemães e outra que se opõe a eles.
Em “Tempestade ainda”, dois irmãos da mãe de Handke, o cronista da peça, partem para a guerra com uniforme nazi e morrem na frente, enquanto ela engravida de um alemão, com quem depois vem a casar e que adota o autor. Na ficção, outros dois irmãos juntam-se à resistência.
Para João Lourenço, Peter Handke mostra todo o seu amor pela controvérsia vivida na região da Caríntia pelos seus habitantes, que foram “os únicos austríacos a revoltarem-se contra o Terceiro Reich”.
A atitude britânica, assente no modelo do imperialismo inglês, também não passa incólume. Quando as tropas aliadas chegaram à região, na última fase do conflito, os britânicos “portaram-se pior do que nas suas ex-colónias”, escreve o autor.
O título “Tempestade ainda” (“Immer noch Sturm”, no original) tem origem na didascália (indicação) “Storm still” usada por Shakespeare na abertura da segunda cena do terceiro ato de “Rei Lear”, uma peça de que Handke traduziu sequências para a produção do encenador e realizador suíço Luc Bondy, estreada em Viena em 2007.
João Lourenço e Vera San Payo de Lemos, responsável pela dramaturgia de “Tempestade ainda”, queriam fazer uma peça do escritor austríaco, assumir o desafio que mostrasse “a beleza e poesia da linguagem de Handke, a história dele e por que motivo vai às origens”.
“Éramos para fazer isto há dois ou três anos e acabámos por não fazer. E hoje, infelizmente, com todas as guerras, a Segunda Guerra Mundial torna-se muito atual”, fundamentou o encenador.
Para João Lourenço trata-se de um “reencontro feliz” com um autor cuja escrita e produção para cinema foi acompanhando sempre, mas no qual não voltou a tocar desde que, em 1972, encenado por Fernando Gusmão, interpretara “Insulto ao público”, com Rui Mendes, Irene Cruz, José Morais e Castro e José Messias. Foi no antigo Grupo 4, companhia que viria a estar na base do Novo Grupo — Teatro Aberto, em 1982.
Ao ler esta tragédia — que Peter Handke configura em tragédia, onde não faltam sequer os clássicos cinco atos deste género dramático –, João Lourenço resolveu voltar ao autor que, ao longo de toda a obra, tem abordado a figura da mãe.
“A mãe de Handke, uma atriz amadora da Caríntia, está em toda a obra do escritor, assim como vai estar no palco, pois ele convoca-a ao longo da peça, dialogando sempre com ela, incluindo quando ela ainda o traz na barriga”, sublinhou o encenador.
A cadeia de acontecimentos associados ao passado de Handke surge em obras iniciais, como “Wunschloses Unglück” (“Infortúnio indesejável”, em tradução livre), de 1972, em que aborda o suicídio da mãe, ocorrido no ano anterior.
Em 1986, retomou a história da família em “A Repetição” (título da edição brasileira), ligando-a pela primeira vez ao movimento de resistência eslovena, no sul da Áustria, “drama real” que retoma em 1997, em “Zurüstungen für die Unsterblichkeit” (“Ligações à imortalidade”, em tradução livre) e em “A noite do Morava”, de 2008, romance publicado há dois anos em Portugal pela Relógio d’Água, passado num cenário posterior a uma imaginada nova guerra mundial.
“A minha mãe sempre me falou muito sobre os mortos, sobre os irmãos que ela amava e que morreram na guerra”, disse Handke ao jornal Die Zeit, na entrevista de novembro de 2010. “A vida dos mortos sempre me absorveu. O meu primeiro romance, ‘Die Hornissen’ [“As vespas”, em tradução livre], é baseado numa história que ela me contou.”
A crítica internacional vê na abordagem das origens eslovenas de Handke, e na experiência de guerra da família, uma ligação às suas posições controversas e contestadas sobre os Balcãs e a desintegração da antiga Jugoslávia.
“Talvez possam ser vagamente explicadas, se não perdoadas, como parte da necessidade de Handke de ser inconveniente e errado, aquele impulso de descobrir o ninho de vespas e de ser picado”, escreveu o autor irlandês Hugo Hamilton, no jornal britânico The Guardian, quando da atribuição do Nobel da Literatura ao escritor austríaco, em 2019.
“Tempestade ainda” tem versão dramatúrgica de João Lourenço e Vera San Payo de Lemos, que também são responsáveis pela encenação e dramaturgia, respetivamente.
A peça é interpretada por Carolina Picoito Pinto, Crista Alfaiate, João Pedro Vaz, Luís Barros, Manuel Sá Pessoa, Mia Henriques, Sérgio Praia e Susana Arrais, e conta com os músicos Carlota Ferreira e Ernesto Rodrigues.
Renato Júnior assina a direção musical enquanto a direção do coro é de João Paulo Santos.
O cenário é de João Lourenço e os figurinos de Marisa Fernandes.
“Tempestade ainda” vai estar em cena na sala Azul do Teatro Aberto, em Lisboa, até março de 2024, com récitas à quarta e quinta-feira, às 19:00, à sexta-feira e sábado, às 21:30, e, ao domingo, às 16:00.
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