Canos rebentados e saudades do quarto
Depois de uma primeira noite cheia daquele entusiasmo das viagens, acordámos com uma surpresa: um cano rebentara mesmo ao pé do nosso quarto. A gerência do hotel veio pedir-nos, encarecidamente, para aceitarmos um novo quarto, que tinha a desvantagem de ser bem melhor. Fingimos uma certa hesitação civilizada — e lá fomos.
O problema foi este: o Simão, de seis anos, tinha criado uma profunda ligação emocional ao quarto nas poucas horas em que lá esteve. Não chorou, mas tremeu o lábio — e despediu-se triste dos seus velhos aposentos, antes de seguir para uma suite das boas (bendito cano!).
Para afogar as saudades do petiz, fomos passear para uma quinta pedagógica que há por aqueles lados. Foi então que o Simão descobriu o encanto dos póneis e decidiu que o seu novo objectivo de vida é ter um pónei em casa.
Insistiu muito e nós tivemos de negar-lhe o desejo a rir, imaginando um pónei à varanda, em Lisboa. Que cara faria o nosso gato?
Seja como for, o pónei lá o fez esquecer que agora estávamos num quarto melhor. Mas mais interessante ainda foi descobrir que o Matias, se pouco sabe dizer em língua de gente, desata a imitar uma vaca logo que vê um dos simpáticos bichos. E imita na perfeição! Cada pessoa tem os seus talentos.
Um filho sentado em cima do Algarve
Antes de voltarmos para o hotel, parámos num supermercado para umas compras — afinal, cada vez que abrimos o pequeno frigorífico do quarto de hotel desaparecem uns euros por magia. Pois, lá no supermercado, dei de caras com a prateleira dos mapas. Virei-me para o Simão e disse-lhe: «Não queres um mapa?»
O meu filho tem seis anos. Por que carga de água quereria ele um mapa? A verdade é que algumas das minhas recordações mais queridas das viagens de infância implicam seguir com o dedo — ou com a caneta — os itinerários a fazer. Ah, e é tão bom viajar pelos dedos mesmo antes de nos fazermos à estrada...
O Simão não disse que não, embora não percebesse muito bem o interesse de ter um GPS de papel. Pediu-me, no entanto, para levar também slime — uma espécie de plasticina pegajosa muito apreciada por humanos com menos de 10 anos. Como o dito slime custava uns dois euros e ele parecia muito entusiasmado, disse-lhe que sim. Mal sabia eu o que aquilo iria provocar...
Seguimos para o hotel. Quando chegámos, a primeira coisa que fizemos foi abrir o mapa e estendê-lo no chão. Ah, o prazer que é ver a Península Ibérica ali aos nossos pés. O slime ficou esquecido na mesa.
Pus-me a seguir o itinerário com os dedos. Assinalámos as cidades que já visitámos em família. O Simão achou curioso — mas foi o Matias, o outro filho, com um ano, que decidiu avançar pelo país fora, começando no Norte e acabando no preciso lugar onde estávamos, no Algarve, virados para Marrocos. Aí acampou, tentando rasgar o Atlântico. Impedi-o a tempo!
O estranho caso das minhocas no frasco
É então que a Zélia — a minha mulher — diz horrorizada: «O que é isto?!» Estava com o frasco de slime na mão. «Isto tem minhocas!»
O Simão e eu aproximámo-nos, enquanto o Matias comia a ilha da Madeira.
De facto, a boiar naquele visco, estavam minhocas brancas. Os três olhámos com cara de nojo, sem saber o que pensar.
Seria de propósito? Telefonámos aos primos do Simão, conhecidos especialistas em nojeiras infantis, que nos garantiram não conhecer nenhum slime com minhocas. Aquilo era mesmo uma infestação!
Já estávamos prontos para ir reclamar ao supermercado, quando nos lembrámos de visitar o website da empresa que vendia aquela coisa manhosa, que não serve para nada a não ser para sujar roupa.
Foi então que descobri que aquele era o famoso slime verde (que ignorantes somos...), que tem como nome «Surpresa Asquerosa»!
Uma gosma pegajosa com minhocas? Era mesmo assim...
O Simão perguntou-nos então: «São minhocas de brincadeira?»
Sim, são mesmo de brincadeira...
«Ah, tudo bem, mas tira-as, por favor...»
Confesso que, mesmo sabendo que não passavam de pedaços de plástico branco, senti algum nojo em tirar os bicharocos daquela plasticina viscosa. Até porque tinha chegado à conclusão que o slime parece ranho. Surpresa asquerosa, de facto...
Pois, no resto das férias, brincámos, saltámos, vimos televisão, conversámos, enervámo-nos (que também faz parte). Foi durante estas férias que o Matias, alimentado a pedaços de mapa, se pôs a gatinhar decidido e pegou na bola do irmão, atirando-a para os pés dele, deixando o Simão derretido ao perceber que já pode jogar à bola com o mano.
Entre mapas e minhocas de plástico, cada pessoa tem os seus gostos e cada geração tem as suas brincadeiras — as minhas recordações nunca serão iguais às dos meus filhos. Póneis a pastar num apartamento (na nossa imaginação), minhocas a boiar em ranho (mesmo de plástico), felizes jogos de bola entre irmãos (por cima dum mapa amarrotado)... É também destas coisas que se fazem as recordações de infância do futuro.
Marco Neves | Tradutor, professor e autor. Escreve sobre línguas, livros e outras viagens no blogue Certas Palavras. O seu livro mais recente é Palavras que o Português Deu ao Mundo
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